segunda-feira, outubro 17, 2011

A voz do dono


Geralmente indignamo-nos quando o poder político interfere nos conteúdos editoriais dos media, mas raramente nos revoltamos quando o poder económico faz o mesmo.

Talvez a maioria das pessoas entenda que o poder político esconde sempre alguma intenção perversa, ao manipular a informação de acordo com os seus objectivos, enquanto o poder económico, condicionado pelas leis do mercado e concorrência, terá uma actuação mais transparente. Desse modo, damos por natural que os donos dos órgãos de comunicação social possam modificar a linha editorial para atingir determinados objectivos, na expectativa que o farão tendo em vista maior audiência e mais lucro, sem pôr em causa o valor da marca do órgão de comunicação de que são proprietários. Nesse sentido não nos parece estranho que o dono de um jornal possa dar instruções para que determinada notícia seja (ou não seja) publicada. Ou, talvez, escolher os repórteres ou correspondentes que quer ver em áreas determinantes para o seu negócio. E até mesmo suprimir rubricas incómodas e despedir jornalistas que, do seu ponto de vista, ultrapassam os limites do razoável.

Quer dizer: aceitar, não aceitamos. Toleramos.

No entanto, damos por inadmissível que as mesmas atitudes sejam tomadas pelo ministro que tutela os órgãos de comunicação públicos ainda que, para todos os efeitos, o ministro da tutela seja o “patrão” dos media do estado. É por isso que há inúmeras referências a “telefonemas”, “interferências” e “pressões” do poder político sobre os órgãos de comunicação social públicos e pouquíssimos relatos dessas mesmas ocorrências (e dos seus efeitos) nos privados. O que não significa que não existam.

Mas o dono de um jornal, rádio ou televisão não pode escolher quais os assuntos que quer ver noticiados pelo seu órgão de comunicação social? Não pode suprimir uma notícia, ou dispensar um jornalista que ameaça pôr em causa um importante contrato comercial?

As respostas para estas perguntas podem ser encontradas na deliberação da ERC (6/OUT-TV/2009) referente à suspensão do Jornal Nacional de Sexta da TVI. Este foi um caso que cruzou pressão política com interferência da administração da empresa. É certo que o episódio ganhou dimensão pela sua relação com o poder político, mais do que pelo poder económico, que é o que pretendo abordar nesta crónica. Todavia, a deliberação remete-nos para o essencial: a salvaguarda da independência e liberdade dos órgãos de comunicação social está plasmada na Constituição da Republica (artigos 38.º e 39.º) e configurada nas leis de Imprensa (art. 22.º) e do Estatuto do Jornalista (art. 12.º).

Porém, as fronteiras entre intervenção legítima e intervenção ilegítima não são fáceis de determinar, como reconhece a própria ERC (1/IND/2007). Essa interpretação depende sempre “de uma análise das circunstâncias e dos actores envolvidos”. Isto quer dizer que, embora a legislação existente tenha sido gizada como uma “liberdade-resistência contra o Estado e outros poderes públicos” (6/OUT-TV/2009), hoje surgem outras preocupações nas relações entre a redacção e a própria empresa proprietária do órgão de comunicação social que não estão ainda claramente enquadradas pela lei. Mas a ERC também sublinha que, se a Constituição da Republica refere que os direitos dos jornalistas surgem antes dos direitos do Estado e de terceiros, então, “o direito de orientação dos órgãos de comunicação social pelos seus proprietários não é absoluto”.

No que se refere às leis para os diferentes sectores dos media é a lei de Imprensa que mais claramente separa “os campos de actuação do proprietário e do director [de Informação], competindo ao primeiro a gestão da empresa e ao segundo a orientação editorial” sendo que a elaboração do Estatuto Editorial é a única forma de participação legal do proprietário e matéria de conteúdos. Apesar de esta referência constar apenas da lei de Imprensa, entendeu a ERC, no caso da deliberação sobre a TVI, que estas normas “têm natureza transversal” e nesse sentido deve ser reconhecida, em todos os media, a autonomia do director de Informação e a correspondente impossibilidade legal da administração tomar decisões de natureza editorial. Já o Estatuto do Jornalista reforça essa autonomia consagrando a todos os jornalistas - e não apenas ao director de Informação - o direito de recusarem “quaisquer ordens ou instruções de serviço com incidência em matéria editorial emanadas de pessoa que não exerça cargo de direcção ou chefia na área da informação”. Aliás, sublinha a ERC, do ponto de vista deontológico “a garantia de independência não é apenas encarada como um direito, mas também como um dever”. Naturalmente que a competência da administração para demitir quadros que se recusem a cumprir ordens daquele órgão de gestão não está em causa. Contudo, a administração não pode alegar o incumprimento de ordens editoriais para justificar o despedimento.

O caso TVI teve o mérito de clarificar a interpretação jurídica sobre esta matéria. E, apesar da pouca legislação, ficou demonstrado que é a suficiente para regular um sector onde a maioria dos agentes ainda desconhecem os seus direitos e deveres.

José Mendes - (Publicado em Setúbal na Rede em 17-10-2011)