domingo, fevereiro 24, 2013

Conta-me histórias



Os jornalistas são produtores de narrativas. Eles transmitem informação, narrando acontecimentos ou contando eventos que assistiram, participaram ou dos quais ouviram falar.

Ao contrário da narrativa literária, a jornalística apresenta o relevante no início, seguindo a regra das seis perguntas a que se deve responder logo no princípio da notícia: quem, o quê, quando, onde, como e porquê. É na resposta às duas últimas que muitas vezes a escrita do jornalista resvala para a narrativa literária, no sentido de «fantasiosa» ou distante da realidade.

A urgência mediática faz com que o jornalista procure de imediato «a causa» da notícia, muitas vezes deduzindo a partir dos dados que dispõe, ou conferindo credibilidade a deduções de terceiros. Assim, não nos surpreendemos ao ler nas notícias que «a mãe matou os filhos porque tinha perdido a guarda das crianças»; «o homem suicidou-se porque ficou sem emprego»; «o autocarro despistou-se por causa do ressalto na estrada».

Por certo alguns dirão: «salta à vista que foi por essa razão e não por outra qualquer», como se fosse «normal» que alguns pais que perdem o controlo parental matem os seus filhos; que alguns desempregados se suicidem ou que alguns despistes sejam provocados por ressaltos na estrada. Mas se a afirmação é válida para «alguns» não o é para todos, pelo que terá de haver outras causas - para além destas - para explicar a notícia. Porém, nem sempre são identificadas pelo jornalista.

Mais estranho é o que se passa no noticiário de economia, quando o repórter dos mercados financeiros, logo na abertura da bolsa, avança as razões que explicam a subida ou descida das ações, ainda que a meio da manhã a tendência se inverta e as mesmas razões sirvam para justificar o contrário. Afirmar que «os investidores estão a reagir negativamente à decisão de ontem do BCE» não é o resultado de uma sondagem junto dos investidores, mas uma perceção inferida pelo jornalista ou por um «perito» qualquer.

O recurso a fontes para validar uma determinada interpretação dos factos, é recorrente na narrativa jornalística e levou ao surgimento de uma nova categoria de atores mediáticos: o «especialista». Trata-se, muitas vezes, de alguém que percebe tanto do que se está a passar quanto o jornalista, mas que fala com a autoridade de quem sabe muito mais.

Geralmente o «especialista» teve um percurso académico numa área específica, ou viveu experiências semelhantes àquela que está a ser relatada pelo jornalista. Todavia, esses conhecimentos não garantem uma leitura acertada dos acontecimentos, sobretudo quando o «especialista» está no estúdio a quilómetros da notícia. Quanto muito poderá lançar hipóteses e sugerir pistas para a investigação do repórter, o qual estará mais habilitado para explicar o acontecimento.

Por vezes o «especialista» ascende à categoria de «comentador», uma espécie de «grande especialista» que domina todos os assuntos, conseguindo opinar da política ao futebol, passando pela economia e cultura, sem ter a noção do ridículo. Na verdade «comentador» e «vox pop» - como se chama à recolha aleatória de depoimentos na rua - são duas realidades que se tocam na narrativa jornalística, diferenciando-as apenas o valor do cachet e o contributo que dão para a informação-espetáculo.

Mas, nenhum deles importa, se o que afirma não está de acordo com as expectativas do jornalista. É por isso que, num incêndio, por exemplo, se o repórter pergunta ao bombeiro se a origem do fogo «foi um curto-circuito», e em troca obtém uma resposta evasiva, esse repórter vai procurar testemunhas que lhe digam aquilo que quer ouvir. Como defendia o sociólogo Pierre Bourdieu, «o jornalista quase sempre encontra o que procura».

A narrativa jornalística está assim condicionada à perspetiva do jornalista e todos os intervenientes acabam por ajustar o seu discurso a essa interpretação. Mas os jornalistas tendem a agrupar-se em torno da mesma matriz de análise, atribuindo importância às mesmas circunstâncias. Assim, as narrativas de diferentes repórteres assemelham-se, ainda que a explicação dos acontecimentos, resulte da interpretação de cada um.

Os jornalistas sentem-se na obrigação de atribuir uma «razão» a um acontecimento, não só para o tornar mais claro e mais percetível, mas para o inserir no fio da atualidade, atribuindo-lhe uma explicação anterior e, eventualmente, uma consequência futura. Essa narrativa cronológica é perpetuada pelo efeito de «contágio» que faz com que todos se sigam uns aos outros e todos dissequem a realidade segundo as mesmas categorias. Por isso achamos «normal» que os desempregados se suicidem. Provavelmente os potenciais suicidas também.

(Publicado em Setubal na Rede em Fevereiro 2013)