segunda-feira, maio 05, 2014

Propaganda

A propaganda está a ocupar o espaço onde antes havia censura. Mas ao contrário desta, são poucos os que se revoltam perante esta realidade.

A evocação dos 40 anos do 25 de Abril recuperou velhas histórias sobre a censura que chocaram os jovens jornalistas. "Como é possível que o poder consiga calar a verdade?" perguntou-me um deles, ao acabar de ler um dos excelentes artigos sobre a Revolução de Abril. É certo que a pergunta era mais de indignação, do que à espera de uma resposta minha. Eu também não vivi esses tempos de mordaça, e as memórias da censura chegaram-me através dos velhos jornalistas que conheci.

Hoje, temos a convicção que esses tempos não voltarão. Não apenas por vivermos em democracia, mas sobretudo pela diversidade de meios de comunicação que tornam impossível um regresso ao "visto prévio" e ao lápis azul. Pura ilusão.

Apesar da Internet, da TV por satélite, ou até das tradicionais rádios de ondas curtas, sabemos que várias ditaduras conseguem erguer barreiras à divulgação de informação. Anualmente várias instituições quantificam a liberdade de imprensa no mundo, e os resultados continuam a não ser muito animadores. A maioria da população do planeta não tem livre acesso à informação. Muitos jornalistas também não. Mesmo em democracias.

É aliás curioso que, apesar da profusão de órgãos de comunicação social, cada vez mais as notícias que vemos e lemos nos parecem iguais. Não apenas nos temas, mas na forma e ângulo com que são apresentadas ou até mesmo no texto exatamente igual.

Este mimetismo tem sido estudado por muitos académicos, especialistas na sociologia da comunicação. Os media seguem-se uns aos outros, e os jornalistas também. É por isso que, num discurso de um político, por exemplo, os jornalistas acabem por destacar as mesmas frases (por vezes já sublinhadas pelos assessores, no texto distribuído aos repórteres). E, se por acaso algum deles escolhe outro caminho, é bem provável que seja admoestado pelo chefe "por ter passado ao lado da notícia".

Aqueles que são considerados "referência" são imitados por outros, mas por sua vez também têm as suas referências, numa pirâmide de influência que foca e condiciona a informação. Esta é uma forma de censura, não imposta por um poder despótico, mas pela "ditadura da normalidade". Quem controlar o topo da pirâmide, pode influenciar toda a comunidade.

Os recentes conflitos no mundo revelaram aos leitores mais atentos um padrão de "branco e preto" nos atores das notícias. Por mais distantes que nos pareçam os acontecimentos, os medias relatam os factos como se fossem entre "nós e os outros". Num jogo subtil de palavras, temos de um lado – do nosso lado – os "opositores", "revoltosos" ou as "vítimas" enquanto do outro estão os "terroristas", "provocadores" ou "desordeiros". Essa linguagem é coincidente com o discurso oficial da diplomacia (o mesmo se aplica para o "outro lado"), não porque exista uma coação ou porque os órgãos de comunicação social se tenham assumido todos como "oficiosos", mas porque simplesmente é o que a "normalidade" impõe.

Sabemos que, na economia, muito poucos controlam quase tudo. Preocupamo-nos com o domínio desses grupos económicos na banca, energia ou tecnologia, mas não nos media. E todavia, a influência dos lóbis torna-se evidente à medida que as tradicionais famílias fundadoras dos jornais dão lugar a grandes grupos económicos que usam os órgãos de comunicação social para influenciar as opções geopolíticas que favorecem os seus negócios.

Enquanto a censura é a arma do poder político das ditaduras, a propaganda é o expediente do poder económico para influenciar a opinião pública nas democracias. A razão da censura é, escondendo a verdade, levar-nos a acreditar numa outra realidade. A propaganda também. E, tal como a censura, a propaganda anula-se nas fronteiras, porque ela não se faz para atingir o outro, mas para nos atingir a nós. Ambas erguem uma cortina de fumo para legitimar a ação do poder. Só que, ao contrário da censura, o jornalista consente e colabora, porque ele é o primeiro a acreditar.


Publicado em Setúbal na Rede a 5/5/2014