quarta-feira, junho 04, 2014

Boa Imprensa


Ouvimos muitas vezes dizer que determinado político "tem boa imprensa", como contraponto a outros que se presume, não terão.

Ter boa imprensa não é, neste caso, uma consequência, mas uma qualidade do indivíduo. É o mesmo que ter "boa imagem", "eloquência" ou "carisma". Boa imprensa é saber agradar aos jornalistas, conseguindo em troca, facilidades na divulgação de notícias positivas e evitando (ou pelo menos minimizando) as notícias negativas. Se quiserem, é uma espécie de "marketing pessoal" feito pelos media.

Por diversas vezes tenho referido aqui que o envolvimento do jornalista nas causas que noticia condiciona a perceção que o leitor tem dos acontecimentos. E não se trata da militância política. Essa, geralmente o jornalista consegue separar da sua atividade profissional. É algo mais subtil.

Quem está fora do meio jornalístico certamente imaginará que a manipulação dos órgãos de comunicação social é feita por telefonemas de ministros, exigências de administradores ou de anunciantes e ordens dos diretores, ditando o texto das notícias para jornalistas obedientes.

Embora esse cenário possa ser plausível, ele é muito raro nas redações. Ainda que a estrutura hierárquica defina o que é que o jornalista vai fazer, é ele que decide o ângulo da notícia e o texto que vai escrever.

Esta autonomia do repórter, que caracteriza a comunicação social em Portugal e na maioria dos países ocidentais, tem no entanto um contraponto: ela está ligada ao interesse do jornalista pelos temas que noticia. Quer dizer que se o jornalista tiver filhos na escola, certamente estará mais sensível para assuntos relacionados com a educação, do que outro que não tenha essa preocupação. Do mesmo modo, um jornalista que tenha uma opinião sobre as touradas, estará mais predisposto a escolher esse tema de um discurso político que abordou também outros assuntos.

Naturalmente que os jornalistas se leem uns aos outros e, desse controlo mutuo que exercem, resulta uma realidade que é partilhada por todos sobre o que é notícia, ainda que, para cada um, o modo como esta é abordada reflita a sua perspectiva pessoal. Ou seja: não é o interesse da notícia que a torna importante, mas é o interesse do jornalista que a faz importante. E, se algo é importante para os jornalistas, acabará também por ser importante para os leitores. Os políticos sabem isso, e os mais competentes sabem utilizá-lo a seu favor.

Há duas formas de chegar aos eleitores: uma através de um discurso assertivo e de uma base de apoio militante que sustente um movimento incontornável para os jornalistas; outra por um discurso cativante para os jornalistas, assegurando uma presença nos media que se torne incontornável para os eleitores.

Quando a mobilização dos militantes é escassa e o poder da televisão decide quem ganha e quem perde as eleições, não surpreende que os políticos procurem ganhar votos conquistando a atenção dos jornalistas. Ter "boa imprensa" é o melhor trunfo eleitoral. É por isso que na campanha para o Parlamento Europeu não se debateram temas da Europa. Não porque eles não tivessem sido falados pelos candidatos, mas porque os jornalistas não os acharam interessantes e os políticos acabaram a falar de assuntos que lhes garantiam presença regular nos telejornais. Muitas vezes refinando-se na arte da "peixeirada".

Se os políticos de hoje são fracos e a política é desinteressante, será porque os políticos são maus, certamente, mas é também porque os jornalistas não são mais exigentes. Afirmar que os políticos têm discursos ocos é esquecer que quem faz as perguntas e edita as respostas são os jornalistas. Os políticos só querem "ter boa imprensa" e para isso, como dizia a minha avó, "albardam o burro à vontade do dono". Os media "têm a faca e o queijo na mão", é bom que não se esqueçam que também são responsáveis pelo resultado.




Publicado em Setúbal na Rede em 03-06-2014