terça-feira, julho 01, 2014

Paz, Pão, Povo e Televisão


O anúncio de que o PSD se prepara para lançar um canal de televisão agitou a comunidade jornalística. Ao entusiasmo de alguns, outros responderam com a pergunta "não bastam os que já têm?", numa clara alusão à predominância de comentadores social-democratas em quase todos os canais de televisão. O receio de que a máquina da propaganda governativa utilize uma nova "arma", sobrepôs-se à preocupação pela institucionalização da televisão como ferramenta de propaganda política. Todavia, não dei por alguém se ter interrogado sobre o papel dos jornalistas neste tipo de órgãos de comunicação.

Já as questões jurídicas suscitaram de imediato a resposta do Presidente da ERC, Carlos Magno, e do Vice-presidente do Conselho Regulador, Arons de Carvalho, ambos considerando que o projeto "está dentro do espírito da Lei da Televisão". Reações que são reveladoras de que este é mais do que um simples projeto de intenções e que em breve veremos uma onda de televisões partidárias, como acontece agora com as televisões dos clubes desportivos.

Com efeito, a lei veta aos partidos políticos o acesso à televisão, mas esta limitação aplica-se ao que se considera "televisão em sinal aberto" ou, dito de uma maneira mais simples, à TDT. Porém, a lei permite o acesso à Internet e a "canais de acesso condicionado" como por exemplo o cabo. Percebe-se a intenção do legislador. A televisão aberta (TDT) tem um número limitado de canais, por isso o acesso à licença de emissão deve garantir que ficam afastados dela quem tem parte no processo de decisão. Já quanto à Internet e cabo, dado que podem ter, teoricamente, um número ilimitado de canais, não vale a penas restringir o acesso, uma vez que – em princípio – todos os partidos acedem em igualdade de circunstâncias.

Apesar de tudo, a lei ainda impõe condicionantes na programação, definindo-a como um serviço "de natureza doutrinária, institucional ou cientifica" e, se é verdade que não se espera que um canal partidário vá transmitir um reality show, também é certo que os conceitos definidos na lei podem ser esticados até ao impossível. Talvez por isso, já há quem defenda uma maior clarificação da Lei da Televisão, até porque além do canal do PSD, muito provavelmente, teremos também o canal do PS e do PCP. Seria uma boa oportunidade para também rever o papel dos jornalistas nestes órgãos de comunicação.

O artigo 14.º do Estatuto do Jornalista estabelece que "constitui dever fundamental dos jornalistas […] informar com rigor e isenção". É difícil perceber que isenção e rigor poderão ter jornalistas que trabalham para um órgão de comunicação propriedade de um partido político ou clube desportivo. E, no entanto, os canais de televisão deste género (atualmente apenas desportivos) têm jornalistas nas suas equipas.

O jornalismo corporativo não é propriamente uma novidade. Desde sempre existiram revistas e boletins de organizações profissionais ou sociais e até mesmo por organismos públicos oferecendo informação, em que eles são também os atores e as fontes jornalísticas. A descida nos custos de produção de televisão e o acesso a novas plataformas como o cabo e Internet abrem novas oportunidades para os financiadores deste tipo de órgãos de comunicação. A crise nos media tradicionais está a transferir os jornalistas para este género de órgãos de comunicação – por vezes rostos conhecidos da televisão – dando a ilusão de que estamos perante um novo órgão de informação quando na verdade é mais um canal de marketing da instituição. A chegada dos partidos políticos, através da televisão, é a ponta visível de um iceberg ainda sem regulação.

(Publicado em Setúbal na Rede em 01/07/2014)