sábado, agosto 02, 2014

Foto choque


As fotografias do avião da Malaysia Airlines, abatido sobre a Ucrânia, causaram viva celeuma entre os jornalistas, depois de alguns jornais terem colocado na primeira página as imagens de corpos das vítimas entre os destroços do avião.

Não foi só em Portugal que esse debate surgiu. Um pouco por toda a parte as imagens das vítimas ilustraram as notícias sobre a queda do avião e levaram para as redações a discussão sobre os limites à exposição de cadáveres nos media (esta crónica, aliás, surge depois de eu ter lido um artigo de opinião de Ludwig Greven, editor do jornal alemão Zeit online, sobre o mesmo tema).

Com efeito, os motivos da queda do avião, a par da tensão diplomática que depois se seguiu, despertaram o interesse dos leitores e trouxeram para a Internet - e particularmente para as redes sociais - um debate aceso enriquecido por fotos recolhidas no local, não apenas por jornalistas, mas também por todas as pessoas com telemóvel que conseguiram lá chegar.

Quando chegaram às primeiras páginas dos jornais, já as imagens tinham percorrido as redes sociais, argumentam uns, sublinhando que se há interesse do leitor e é a realidade, porquê escamoteá-la? Mas outros sustentam que é voyeurismo mórbido que deve ser evitado.

É certo que os jornais que o fizeram (em Portugal ou noutros países europeus) têm um histórico de jornalismo considerado sensacionalista, pelo que a utilização destas imagens abona pouco em prol do argumento favorável. Mas também é verdade que, se não é comum verem-se imagens de vítimas de acidentes, os jornais (mesmo da dita imprensa séria) têm publicado numerosas imagens de vítimas da guerra, como no caso do conflito de Gaza.

E isto suscita outra questão: Qual a diferença entre as vítimas do ataque ao avião da Malásia na Ucrânia e as vítimas dos bombardeamentos israelitas em Gaza? Porque podemos ver imagens de corpos empilhados em valas comuns, executados às mãos de um ditador, ou das vítimas de um ataque terrorista, e não podemos ver as imagens dos mortos de um acidente ferroviário ou aéreo?

Quando é que as vítimas deixam de ser apenas indivíduos e passam a ser parte de uma comunidade afetada? Quando é que o estatuto de mártir de uma causa se sobrepõe à dignidade que todos devem ter depois da morte? São questões que merecem reflexão, e não apenas discutir os limites entre o sensacionalismo e a reportagem da dura realidade.

O sensacionalismo também se faz mesmo sem mostrar corpos estropiados, como aquele canal de televisão cujo repórter vasculhou a bagagem dos passageiros do avião; o voyeurismo também se alimenta da dor dos familiares, explorada em direto pela televisão. Há imagens chocantes "dignas" de serem exibidas pela imprensa "séria" e há outras imagens que resultam do oportunismo de alguns órgãos de comunicação. Não é, no entanto essa a explicação.

A resposta encontrei-a no artigo de Ludwig Greven que referi: “As imagens das vítimas são agora parte da guerra de propaganda. Elas são usadas especificamente para produzir efeitos sobre o lado oposto. E são muitas vezes manipuladas com essa finalidade, tornando a sua origem e autenticidade difíceis de verificar.” É por essa razão que vimos as imagens dos corpos dos passageiros do avião abatido na Ucrânia e não vimos os das vítimas dos aviões caídos em Taiwan ou no Mali. É por causa da propaganda que temos imagens de vítimas dos bombardeamentos da Síria, de Israel, ou de outra qualquer guerra que consiga aceder à rede que alimenta os media globais.

Por vezes essas imagens tiradas doutros conflitos, às vezes mesmo encenadas e, em muitas ocasiões, trabalhadas com o programa de edição de fotografia chamado PhotoShop que permite manipular a imagem, acentuando o que é relevante e apagando o que não interessa à mensagem. Agora temos o "Foto Choque" (ou se preferirem o anglicismo: photoshock) através do qual o poder da imagem é acentuado, com o objetivo de induzir uma mensagem. Em qualquer dos casos, as vítimas são os mortos exibidos nas imagens, mas também os leitores.


(Publicado em Setúbal na Rede em 29/07/2014)