segunda-feira, julho 27, 2015

Raios e coriscos

Certamente já ouviu a notícia do homem que foi atingido por um raio. Mais tarde, também a filha dele. Ambos sobreviveram e, em seguida, ganharam um milhão de dólares na lotaria. A notícia pertence àquele grupo de acontecimentos que, de tão extraordinários, são notícia em qualquer parte do mundo. Com efeito, “a probabilidade de tudo isto ocorrer é de 1 para 2,6 triliões”, escreveram alguns jornalistas apressados, citando o matemático que se deu ao trabalho de fazer as contas. Foi isto que leu, não foi? Mas está errado.

Não é a conta que está errada, mas a tradução. Ou melhor, a conta tem parcelas tão abstratas que eu não saberei confirmar ou refutar, já o modo como são traduzidas as notícias, de forma apressada – e por vezes incompetente – que caracteriza o jornalismo atual, é posto a nu numa simples notícia de “fait-divers” que habitualmente se entrega ao primeiro estagiário que apareça. O que está errado com a tradução da notícia é o resultado da conta: não são triliões mas biliões, o que não é exatamente a mesma coisa. Entre um e outro há uma diferença de 6 zeros, mas que à direita do número têm claramente outro valor.

A razão do erro está na origem da notícia: os sortudos são cidadãos canadianos, e o cálculo probabilístico foi feito para uma televisão norte-americana. No Canadá, Estados Unidos e na generalidade dos países anglo-saxónicos utiliza-se a Escala Curta para referir grandes números. Em Portugal e na maioria dos países europeus utiliza-se a Escala Longa e isso faz toda a diferença. Com efeito, enquanto a Escala Curta arruma os grandes números por categorias que têm por base potências de mil (milhões, biliões, triliões, etc.), na Escala Longa as categorias têm por base a potência de milhão (milhões, milhares de milhões, biliões, milhares de biliões, triliões, milhares de triliões, etc.).

A língua portuguesa tem ainda a particularidade de usar a mesma palavra para números com significados muito diferentes, uma vez que o Brasil adotou a Escala Curta enquanto Portugal e os restantes países de língua portuguesa utilizam a Escala Longa. Por isso “um bilião”, não é um bilião para todos os falantes de português. Porém, se isso é infelizmente comum quando a notícia é copiada de uma fonte brasileira, no caso dos felizes canadianos, encontrei o mesmo erro na imprensa espanhola, italiana ou alemã.

Esta confusão entre biliões e triliões é muito comum nos media quando se referem a temas económicos e financeiros e geralmente a números tão abstratos, para o comum dos mortais, que uma diferença entre três ou seis zeros é absolutamente irrelevante. Os jornais económicos anglo-saxónicos têm grande influência nos outros órgãos de comunicação europeus, e como se verificou na notícia que refiro, também os jornais de outros países da Europa sofrem da mesma incompetência de alguns dos seus jornalistas, que os congéneres portugueses.

É para evitar esta confusão entre escalas curtas e longas que os bancos europeus utilizam nos seus relatórios a terminologia norte-americana; e mesmo o Reino Unido, a partir do momento em que se tornou uma grande praça financeira, abandonou a escala europeia para abraçar a nomenclatura utilizada pelo capital dos Estados Unidos.

Assistimos assim a uma normalização da terminologia dos grandes números, sustentada na aparente incompetência dos jornalistas em distinguir entre uma escala e outra. Ou o número é importante e deve ser transmitido sem erros, e para isso usa-se a Escala Curta; ou o número é irrelevante, “sobre a probabilidade de ser atingido por um raio e ficar a falar búlgaro”, e aceita-se o erro com um encolher de ombros.

Enquanto no primeiro caso se impõe ao jornalista uma escala com uma medida diferente daquela que é usada no seu país (ainda que a fonte originária da notícia também seja portuguesa), no segundo caso, mais grave, é o jornalista que impõe aos seus leitores ou ouvintes uma escala que ele nem percebe. Dessa forma banaliza-se uma nomenclatura e cria-se a necessidade de uma normalização, ou “Acordo Numérico” para fazer prevalecer como correto o que atualmente não está certo.

Não deixa de ser curioso, no entanto, que muitos daqueles que hoje clamam contra o Acordo Ortográfico, nada digam – ou até mesmo colaborem – desta anexação do significado etimológico. Clamam que um “facto” não é um “fato”, mas não se importam que “um bilião” seja “um trilião”. Quando esse valor representa dinheiro, manda quem o tem e de onde vem. Mesmo que um raio nos caia em cima.


(Publicado em Setúbal na Rede em 27/07/2015)

quarta-feira, julho 01, 2015

Ecos da notícia


Noticiar é mais do que escrever uma notícia, é também escolher o que é – ou não é – noticiado e como essa informação chega ao leitor. Ao leitor cabe-lhe escolher a notícia que considera mais relevante, no órgão de comunicação social que na sua opinião é mais credível, e o texto escrito pelo jornalista que lhe parece mais claro e assertivo.

Dito desta maneira, parece que a diversidade de órgãos de comunicação social permite uma maior variedade, não apenas de pontos de vista sobre uma notícia específica, mas também uma multiplicidade de temas que não seriam notícia noutros jornais ou televisões.

Infelizmente, apesar de vários canais de televisão, algumas rádios, e um número ainda significativo de jornais diários, uma simples observação poderá comprovar que as notícias são as mesmas, mas também a perspetiva em que a notícia é abordada, os intervenientes entrevistados, e por vezes até as frases proferidas são repetidas por todos os canais.

Dir-se-á que este é um país pequeno, e não há assim tantas notícias. É verdade que muitas vezes não há por onde “fugir” ao assunto e, se a notícia é aquela, naturalmente que todos a vão dar. É verdade! Essa no entanto deveria ser a exceção à regra, todavia o mais comum é o contrário.
Quem está mais atento ao que se escreve e diz nos media, certamente reparará na dependência das notícias de agência. Para os que estão pouco familiarizados com a linguagem da comunicação social, explico que uma agência é uma espécie de grossista das notícias, que distribui pelos seus assinantes notícias e fotografias de acontecimentos, e dessa forma permitindo aos clientes da agência encaminhar os seus jornalistas para outras reportagens que farão a diferença relativamente aos outros medias.

O problema é que a crise no setor levou a cortes nas despesas e no pessoal, e os repórteres acabaram por ser dispensados, ou ficar sentados na redação, e as notícias da agência passaram a fazer os conteúdos da maioria dos órgãos de comunicação social. Como em Portugal só há uma agência – a LUSA – é fácil ver que a diversidade se fica por aí.

Um bom exemplo disso é uma notícia que foi publicada há alguns dias (e ainda perdura nas redes sociais) intitulada “Portugal é o quinto na lista dos países mais corruptos”. A notícia referia-se a um estudo da consultora Ernst & Young sobre a perceção da corrupção em 38 países. Ao lê-la percebe-se claramente que é um estudo sobre a perceção dos inquiridos, mas o título remete para uma afirmação taxativa de uma métrica verificável.

Se o corpo da notícia está bem escrito, o título recorre ao estilo “tablóide” exagerando o seu conteúdo. Seria de esperar que esse título não passasse no “crivo” da chamada imprensa séria, todavia não foi assim. Uma rápida pesquisa na Internet poderá revelar pequenas variações, mas o erro do título foi mantido em quase todos os órgãos de comunicação social portugueses.
Poderemos achar que foi desatenção ou impreparação dos jornalistas que em cada um dos media editaram a notícia, ou um exemplo mais evidente do clássico “corta-e-cola” que tomou conta das redações nacionais. Pode ser tudo isso e também a dependência das fontes de agência que retira ao jornalista os alertas de desconfiança.

Em vez de analisar os factos que têm em mãos, alguns jornalistas limitam-se a copiar e repetir sem espírito crítico. “Diz-se porque alguém disse”, e quem o disse merece confiança. Quando se confia, não é preciso verificar, nem alterar.

Como numa câmara de eco, a notícias são repetidas, e se os outros medias as repetem é porque só pode ser verdade. Acontece que às vezes são “meias-verdades”, ou mesmo uma mentira que, de tantas vezes repetida, se torna verdadeira.


Publicado em Setúbal na Rede 01/07/2015