quarta-feira, setembro 28, 2011

Carta de despedida da Rádio Comercial


Não é fácil escrever uma carta de despedida, mesmo que este momento fosse há muito tempo esperado e, em certa medida, desejado. Não é fácil escrever uma carta de despedida, porque nestes momentos somos assaltados por um turbilhão de sentimentos que toldam a escrita.

Uma carta de despedida é sempre um fechar de porta. Um arrumar de gavetas. Quando se deita fora aquilo que já não nos serve, aquilo que “já não se encaixa” na nossa vida. Mas também quando guardamos as nossas recordações numa pequena caixa, fechada com uma fita de veludo. De uma forma ou de outra, é sempre um momento em que nos separamos do passado.

Recordo sempre os primeiros tempos em que cheguei à Rádio Comercial, cheio de sonhos e com a paixão pela rádio.

Recordo o cheiro do café, acabado de moer, que vinha do bar “O Coice”, logo à entrada. Recordo o cheiro da cera, no longo corredor encerado todas as manhãs. Recordo as paredes amarelas pelo fumo dos cigarros fumados na pequena redacção sem janelas. Recordo o matraquear das máquinas de escrever que crescia de intensidade à medida que se aproximava a hora do noticiário. Recordo o tilintar das campainhas dos telexes, assinalando as notícias urgentes. Recordo o riso das pessoas que por ali passaram e que já ali não estão. Alguns até já “cá” não estão.

Recordo uma rádio com sons, cores e cheiros. Uma rádio com gente.

E agora, quando olho para as rádios de hoje, reparo que são cada vez mais assépticas, inodoras e inócuas. A rádio de hoje é perfeita. Arrumada. Formatada. Rádios onde ninguém vai dizer “Sai grão” ou “Bosch é Brom”. Onde até o improviso é ensaiado, gravado e validado por estudos de opinião. Rádios onde só passam as “grandes músicas” das décadas de ouro, dos “anos 70, 80 e 90”. A única “rádio onde passam os grandes êxitos” que afinal ouvimos em todas as outras.

Na rádio de hoje não há lugar para o directo. Não há lugar para o repórter. Não há lugar para o jornalista. Porque a rádio de hoje tem de ser politicamente correcta. Não pode incomodar. O que interessa é dizer que “já a seguir, vem aí mais uma grande música”. Se o Chiado voltar a arder, deixa arder! Nem sismos nem revoluções vão impedir as rádios de continuarem a passar os “grandes êxitos dos anos 70, 80 e 90”.

Na verdade, acho que as rádios de hoje pararam no tempo. Cristalizaram no momento em que os computadores chegaram à comunicação social. Ao contrário da canção, não foi o vídeo que matou a “rádio star”, foi o computador. Essa máquina que faz a rádio trabalhar sozinha, parecendo que tem gente dentro.

É o fim da rádio? Não. A rádio – a verdadeira rádio – hoje tem imagem. Chamam-lhe TV mas, sobretudo nos canais de cabo, é Rádio com imagem. Tem entrevistas e reportagens, tem noticias de hora a hora e directos. Tem fóruns de debate e até tem música. É rádio, só pode ser! Porque o que ouvimos no rádio são canais de música, simplesmente.
Alguns dirão: “pois, bem prega frei Tomás…” Eu sei.

Em vinte e um anos ao serviço da Rádio Comercial, sete foram como responsável pela informação e, durante esse tempo, a rádio foi cada vez “mais música e menos palavra”. Não estou isento de culpas e terei contribuído para reinterpretar o jornalismo radiofónico à luz dos formatos musicais que agora pareço criticar.

Os alemães usam o termo Zeitgeist para definir o “espírito do tempo” ou uma corrente cultural dominante numa determinada época. O espírito desse tempo, em que os canais televisivos de notícias ainda davam os primeiros passos, assentava em rádios com uma importante componente informativa associadas a uma, ou várias estações musicais. Era assim com o Canal 1 da Renascença e a RFM; com a Antena 1 e Antena 2 e 3; e mesmo, ainda que por um curto período, com a TSF e a Energia e XFM. Também a Rádio Comercial tinha a sua “âncora” informativa na Rádio Nacional. Uma âncora frágil, que não resistiu às tempestades de mudança que atingiram, com regularidade, o grupo Media Capital.

De todas as vagas de tempestade que atingiram a redacção da Rádio Comercial, a mais violenta aconteceu em Setembro de 2002, quando uma dezena de rádios locais “entraram” de um dia para o outro na redacção da Sampaio e Pina, destruindo os sonhos da maioria dos jornalistas da Rádio Comercial. Foi quando inventei a informação “liofilizada” que consumiu os pouco repórteres e matou o orgulho que todos tínhamos numa informação de “primeiras páginas” com uma linguagem simples e directa se procurava dar o “essencial da informação”. Não foi fácil, nem para mim. Mas, no meio da tragédia, vi a oportunidade de criar uma rede nacional de correspondentes. Infelizmente os tempos da administração não eram os meus e quando finalmente a rede ficou concluída, era altura de ceder o lugar para que outros levassem a cabo um novo projecto de informação.

Quando o Rádio Clube nasceu eu estava, portanto, afastado, contemplando à distância um projecto de informação que crescia, mas no qual eu não cabia.

Compreendo as razões de quem decidiu o meu afastamento. Aliás, eu acabei por voluntariamente me distanciar mais, à medida que surgiam as cisões que marcaram o projecto Rádio Clube. As rádios locais surgiram assim como uma oportunidade para retomar a minha ideia de criar uma rede de partilha de informação que escapasse ao centralismo de Lisboa e criando uma grande redacção nacional. Infelizmente, mais uma vez, os tempos da administração não eram os meus. As rádios locais levaram cortes de 50 por cento e o projecto ficou mais uma vez adiado.

Apesar do meu distanciamento e de alguns conflitos que agitavam o Rádio Clube, também podia ver o entusiasmo dos jovens que chegavam às redacções de Lisboa e das locais cheios de entusiasmo – e de sonhos – como os que eu tinha tido quando cheguei à Rádio Comercial em 1989. São esses sonhos que prendem as pessoas a uma vida sem horário, com baixos salários e, muitas vezes, com a instabilidade dos “recibos verdes”.

Uma dedicação que encontrei em todo o lado: Amares, Aveiro, Braga, Coimbra, Leiria, Lisboa, Loulé, Manteigas, Penalva do Castelo, Porto, Redondo, Sabugal, Santarém e Vila Real. Muitas vezes com dificuldades de meios técnicos, outras, pagando mesmo as deslocações para estar “lá”, para não falhar a reportagem ou para repor a emissão no ar, porque uma trovoada fez disparar o disjuntor a meio da madrugada e era preciso ir “à serra”, no meio da tempestade, para carregar no botão.

Foi esse entusiasmo que me deu ânimo.

Muitas vezes, pensei no dilema do náufrago perdido numa ilha deserta onde tem alimento e abrigo, mas que está fora de todas as rotas de navio e onde são remotas as hipóteses de regressar a um mundo onde haja outros humanos. A alternativa, porém é extremamente arriscada: fazer uma jangada e partir mar adentro, à procura de um navio. Assim me senti ao longo dos anos. Demasiados. E por isso me foi faltando a coragem de partir. Até que um maremoto me empurrou da ilha cada vez mais agreste em que se transformou para mim a Media Capital Rádios. Mas, agora que estou numa jangada, perdido sem destino, interrogo-me se não seremos todos nós náufragos arrastados pelas correntes da vida. E, para onde quer que vamos, ou para onde quer que essas correntes nos empurrem, chegaremos sempre a algum lugar.

Esta carta é portanto uma mensagem numa garrafa, para vos dizer que estou perdido, mas não preciso que me salvem. Eu vou-me desenrascar.

Obrigado por tudo o que me ensinaram, levo isso na bagagem. Vai ser-me útil para a vida.
Os meus contactos são os mesmos e já sabem onde me encontrar. Eu vou andar por aí.

Abraço

josemendes

(Publicada pela primeira vez no Facebbok na Segunda-feira, 9 de Agosto de 2010 às 3:42)