sábado, outubro 25, 2014

Mudar


De tempos a tempos ocorre-nos mudar tudo. Mudar de casa, mudar de emprego, mudar de vida. Por vezes é o próprio destino que se encarrega de nos empurrar para essa mudança.
Na verdade, mesmo quando não queremos mudar nada, tudo muda à nossa volta. Mesmo nós estamos em permanente mudança: Envelhecemos, mudamos a nossa maneira de pensar, ou tornamo-nos mais teimosos para conservar o não queremos que seja alvo de mudança.
Também os jornais mudam. Mudam de grafismo, mudam de formato, por vezes até mudam o estilo como comunicam a informação. Essas são as mudanças visíveis para o leitor. As mudanças mais perenes e mais profundas ocorrem sem darmos por isso. Um jornal muda quando muda o seu diretor, ou os seus acionistas. Mas muda sobretudo, quando mudam os seus jornalistas.
O que define um jornal são as notícias que lemos nele. E as notícias são escritas por pessoas que lhes imprimem o seu cunho pessoal. Pessoas que têm o seu estilo próprio de escrever, mas também de indagar e de priorizar aquilo que consideram relevante.
Já aqui defendi várias vezes que quem define o que é notícia é o jornalista. É verdade que o acionista decide quais as linhas que orientam o jornal, e ao diretor cabe estabelecer quais as reportagens que se fazem, e em última análise, o que se publica no jornal. Mas a narrativa é do jornalista. Ele é que decide o que merece ser – ou não ser – relatado.
Num grande jornal, é o conjunto dos seus jornalistas que normaliza o estilo e define a “cultura” que o diferencia dos outros periódicos, e são os jornalistas mais velhos que assumem o papel de guardiões dessa cultura. Tal como numa empresa, é o conjunto de todos os elementos da organização que define as rotinas, que nenhum diretor, ainda que muito empenhado, consegue mudar facilmente.
Infelizmente, as mudanças ocorridas nas últimas décadas nos media nacionais levou a que maioria dos jornais seja constituída por redações muito jovens e por colaboradores precários, perdendo-se a memória da cultura que diferenciava os jornais uns dos outros, e a normalização da narrativa informativa. Tal como antes, cada jornalista define a sua narrativa, imprimindo-lhe o seu estilo pessoal, mas agora sem ser mediado pelos restantes elementos da redação.
Esta situação conduz a vários problemas. Em primeiro lugar porque os jornais regionais são feitos por dois ou três jornalistas, o que significa que o leitor nota que o jornal muda sempre que muda de jornalista. E, se mudar muitas vezes – tal como os outros também mudam muitas vezes, com os jornalistas circulando entre eles – os jornais acabam por ficar iguais.
Mas há outra mudança, menos percetível, que ocorre dentro da redação. Ao trabalhar com equipas muito reduzidas, o diretor de um jornal perde o seu principal poder que é o de decidir o que é publicado num jornal. Nenhum diretor quer ser confrontado com o drama das páginas em branco perto da hora do fecho de um jornal. Isso condiciona o responsável de um jornal, que acabará por escolher colaboradores que não criem problemas.
E muitas vezes os problemas não vêm da base da estrutura hierárquica, mas do topo. Quando a administração pede a notícia que vai facilitar um contrato comercial, o diretor quer um jornalista que faça o que se lhe pede sem muitas perguntas. Num grande jornal esse problema é diluído num suplemento escrito por estagiários, num pequeno jornal esse artigo terá de ser escrito pelo redator principal. Assim muitos jornais acabam por ser escritos por jornalistas acríticos, obedientes e precários.
Mudar a cor, o tipo de letra ou o formato não basta. É preciso mudar as vontades.

Publicado em Setúbal na Rede 20/10/2014