quinta-feira, fevereiro 13, 2014

A aldeia helvética

Tal como a aldeia gaulesa de Astérix, os suíços beberam a poção mágica da democracia e tiveram a sua vitória. Agora estão a fazer a festa, mas em breve o Império virá e não ficará pedra sobre pedra.

Ao contrário do que transparece em alguma imprensa, a decisão dos suíços no referendo sobre a limitação de entrada de estrangeiros no país está longe de ser um problema para a Europa e, a breve prazo, se perceberá que foi o maior "tiro no pé" dos defensores de limites à circulação de pessoas dentro da Europa. A Suíça servirá mesmo de exemplo para movimentos semelhantes que possam vir a surgir dentro do espaço europeu. Por isso estou convencido que os Estados europeus terão, neste caso, uma posição firme e um "castigo" duro, caso contrário, abrirão brechas para os movimentos nacionalistas que estão a crescer na Europa.

Assim, deverá ser o Conselho Europeu e não a Comissão Europeia a responder ao referendo suíço. A diplomacia recomendava que se esperasse que fosse o governo helvético a dar o primeiro passo, mas o tempo é escasso e as eleições europeias estão à porta, pelo que espero novidades no próximo conselho (20 e 21 de Março de 2014). Até lá vai subir o tom das ameaças e os suíços (sobretudo os empresários) vão começar a perceber que a desejada renegociação dos tratados não vai acontecer e os actualmente em vigor vão sendo suspensos ou denunciados.

Apesar da Suíça ser um importante parceiro comercial, os seus 8 milhões de consumidores são irrelevantes para a dimensão da União Europeia. O maior dano será nas regiões fronteiriças, e esse está previamente anunciado pelo resultado do referendo. Já para os suíços será mais complicado. Os grandes bancos e multinacionais dependem de pessoal qualificado estrangeiro e a livre circulação de pessoas e mercadorias são vantagens que as empresas não querem perder. Estou certo que alemães luxemburgueses ou holandeses estarão interessados em abrigar sedes de bancos e empresas que agora estão na Suíça. Os alemães, italianos e franceses também teriam condições para tornar atractiva a deslocalização de pequenas empresas exportadoras que agora estão no lado helvético.

Por toda a Europa estão a crescer os partidos anti-europeus, em alguns países constituem mesmo uma ameaça aos partidos que agora estão no poder. Uma resposta comum da União Europeia terá de ser suficientemente assustadora para travar os eleitores que agora pensam como metade dos suíços. Também os países do leste europeu e, particularmente a Roménia e Bulgária, sabem que estes movimentos xenófobos os escolhem como alvo. Não será de surpreender que esses países venham a ter uma posição particularmente dura contra os suíços e vão travar qualquer hipotética renegociação do tratado. Romenos e búlgaros, depois de humilhados e tratados como "cidadãos de segunda", vão agora fazer valer o seu peso de parceiro em igualdade de circunstâncias com outros estados europeus.

Se a intenção dos eleitores suíços era travar a imigração de magrebinos, africanos e europeus do leste e sul (como aliás desejam muitos eleitores de outros países europeus), os principais afectados pelo resultado deste referendo são os alemães de Baden-Württemberg, os franceses de Rhône-Alpes, os italianos da Lombardia e os austríacos de Vorarlberg e Tirol. Curiosamente estas regiões são das mais ricas dos seus países e onde os partidos antí-europeus têm obtido mais apoios. Daí que me pareça óbvio e até muito oportuno o "castigo" da Suíça pelos governos dos Estados seus vizinhos. Os eleitores destas regiões vao perceber bem o significado do ditado "põe as tuas barbas de molho, quando as do teu vizinho começarem a arder".

Mas também os países com movimentos separatistas, como a Espanha, vão querer mostrar na Suíça o que aconteceria no caso de uma eventual independência da Catalunha. Já que é entendimento da União Europeia que se houver secessão num Estado, o novo Estado que se cria fica fora da união. Aliás, será curioso ver, como nesta matéria irá reagir o Reino Unido. Oficialmente Cameron quer o mesmo que desejam agora os suíços, mas também é confrontado com um movimento separatista na Escócia e com uma crescente opinião pública que pretende a saída da União Europeia.

Finalmente, os países como Portugal, onde existe uma maioria que defende a Europa sem fronteiras, sabem que hesitar neste momento é abrir a porta, não a uma desagregação da Europa, mas à construção de várias "europas", onde os PIGS ficarão no caixote com romenos, búlgaros e… ucranianos.

Falarei disso depois, porque esse é já o "Plano B" da Alemanha.

Jornalismo de Opinião


Os trágicos acontecimentos na praia do Meco revelaram que além do jornalismo de investigação também há "jornalismo de especulação" o qual, à falta de factos para relatar, assenta em relatos de "podia ter sido assim". Acontece que a "realidade" (tal como é definida pelos sociólogos) é produzida pelos indivíduos. Isto é, somos nós que lhe atribuímos significado, e deste modo, tornamo-la real.

O clássico exemplo da garrafa meio cheia, ou meio vazia é suficiente para percebermos que o mesmo facto pode ser interpretado por diferentes perspectivas. Ao escrever uma narrativa, o jornalista é sempre influenciado pelos seus valores. E aquilo que o jornalista escreve também influencia o leitor. Ao escolher um caminho, em detrimento de outro, faz com que determinados factos ganhem significado enquanto outros – porque conduzem noutro sentido – são ignorados.

A linha noticiosa sobre a tragédia do Meco mostrou que depois de ter seguido um rumo, a notícia mudou bruscamente de direção. Todavia não foram novos factos mas a suspeita dos jornalistas a forçar essa mudança. E porque faltavam os factos, avançaram com as suposições até que a "máquina produtora da realidade" se encarregasse de atribuir novos significados a factos que tinham passado despercebidos. Vimos assim detalhadas "reconstituições" e entrevistas com perguntas dirigidas, para produzir uma nova realidade, aquela que hoje todos nós aceitamos.

Não nego que as hipóteses avançadas não sejam plausíveis, e distingo especulação de bom jornalismo de investigação que também aconteceu com esta notícia. O que proponho para reflexão é o papel que os jornalistas desempenharam naquele "período cinzento" quando ainda estavam sem factos, sem testemunhos e apenas com opinião. Talvez valesse a pena (porque ainda se vai a tempo) recolher o que se disse nos telejornais e fazer uma investigação académica de um momento significativo que mostra como o jornalismo – opinando – pode moldar a opinião.


Publicado em Setúbal na Rede em 10-02-2014