quinta-feira, junho 19, 2025

O Desafio dos Media Tradicionais na Era da Fragmentação Informativa

 

O Digital News Report 2025, do Reuters Institute, publicado em 19 de junho de 2025, volta a traçar um retrato preocupante sobre o estado do jornalismo no mundo: confiança em queda, crescente fadiga informativa e proliferação de desinformação. Um fenómeno global que se manifesta com particular intensidade em países como o Brasil, mas que também interroga os media portugueses sobre o seu papel e futuro.

A edição deste ano, baseada em mais de 90 mil inquiridos em 48 mercados, confirma o que os dados anteriores já indicavam: o declínio da influência dos media tradicionais está a acelerar. O consumo de notícias via televisão, rádio ou imprensa escrita continua a cair, enquanto as redes sociais e plataformas de vídeo (como YouTube, TikTok e Instagram) assumem um papel cada vez mais dominante, sobretudo entre os mais jovens. Este "desvio de atenção" favorece criadores de conteúdos, influenciadores e figuras políticas, muitas vezes descomprometidos com práticas jornalísticas rigorosas.

“A dependência de redes sociais e agregadores online está a crescer, ao mesmo tempo que o envolvimento com fontes noticiosas institucionais continua a cair”, lê-se no sumário executivo do relatório.

Em paralelo, verifica-se um fenómeno preocupante: a fadiga informativa. A média global de pessoas que evitam frequentemente as notícias situa-se nos 39%, com valores mais altos em mercados onde as notícias são percecionadas como demasiado negativas ou politicamente tóxicas. Este cansaço favorece a apatia e, paradoxalmente, reforça o espaço de manobra para narrativas desinformativas.

Portugal: Estável, mas não imune

No caso português, o cenário é menos grave, mas longe de ser tranquilizador. A confiança nas notícias mantém-se estável nos 56%, um dos valores mais altos da Europa, o que demonstra uma resiliência do sistema mediático nacional. No entanto, 36% dos portugueses dizem evitar as notícias com frequência, uma subida em relação a anos anteriores.

O acesso às notícias continua a fazer-se principalmente através do telemóvel, com o Facebook, YouTube e WhatsApp como principais portas de entrada. Ainda assim, os sites e apps noticiosas mantêm uma base significativa de utilizadores. A RTP é considerada a marca mais fiável, mas o seu alcance entre os mais jovens é limitado.

A baixa disposição para pagar por notícias (11%) levanta dúvidas sobre a sustentabilidade do setor, num contexto de crescente fragmentação das audiências.

Brasil: O laboratório da fragmentação

O Brasil é apontado no relatório como um dos casos mais extremos de perda de confiança e fragmentação informativa. Apenas 34% confiam nas notícias. Mais de metade dos inquiridos (54%) evita ativamente o consumo informativo, o que coloca o país entre os que mais expressam fadiga noticiosa. As redes sociais, com destaque para o WhatsApp, YouTube e Instagram, são as fontes dominantes.

A polarização política alimenta este cenário. A desconfiança nos media tradicionais e a ascensão de figuras controversas e influenciadores políticos contribuem para um ambiente propício à circulação de desinformação. Com apenas 6% dos brasileiros a pagar por notícias online, os media enfrentam dificuldades acrescidas para manter a independência editorial.

PALOP: Oportunidades e assimetrias

Nos países africanos de língua portuguesa (PALOP), o relatório indica níveis ainda baixos de consumo digital, mas uma transição crescente em meios urbanos. Em países como Angola e Moçambique, o acesso à informação digital é condicionado pela infraestrutura e custos de conectividade, mas o uso do telemóvel e das redes sociais para consumo noticioso está a crescer.

A ausência de dados detalhados impede uma análise profunda, mas o potencial de desenvolvimento de media digitais independentes e a ausência de sistemas mediáticos robustos colocam estes países num ponto crítico — entre o risco da desinformação e a oportunidade de inovação.

Que caminhos para os media tradicionais?

O Digital News Report 2025 sugere que, face à fragmentação, os media tradicionais devem reposicionar-se como fontes fiáveis e acessíveis, sobretudo junto das gerações mais novas. Entre as estratégias mencionadas:

  • Personalização responsável de conteúdos com recurso a IA, desde que com supervisão humana, para garantir transparência e confiança;
  • Exploração de novos formatos audiovisuais, nomeadamente vídeos curtos e podcasts, ajustados aos hábitos de consumo contemporâneos;
  • Modelos de subscrição mais flexíveis, como “bundles noticiosos”, adaptados a públicos relutantes em pagar por conteúdos individuais.

“Apesar de tudo, as marcas noticiosas fiáveis continuam a ser a principal referência para verificar informações online, inclusive entre os mais jovens”, reforça o relatório.

A resposta à crise de confiança e à fadiga informativa não passa por competir com os criadores de conteúdos no seu próprio terreno, mas sim por reafirmar os princípios do jornalismo com novas linguagens e canais, sem abdicar do rigor e da verificação.

quarta-feira, junho 11, 2025

Fact-checking ou fact-marketing? Quando o Polígrafo ajuda a espalhar a desinformação que diz combater

 

Nos últimos anos, plataformas de fact-checking como o Polígrafo tornaram-se atores centrais no ecossistema mediático português. Reclamando para si a missão de “verificar os factos” e “combater a desinformação”, estas entidades conquistaram legitimidade institucional, presença nos grandes meios e, sobretudo, a confiança de um público preocupado com a verdade. No entanto, importa perguntar: estarão realmente a cumprir esse papel ou, paradoxalmente, a amplificar aquilo que procuram neutralizar?

Uma análise crítica à forma como o Polígrafo estrutura os seus conteúdos levanta sérias dúvidas. Com frequência, os títulos e aberturas dos artigos reproduzem — com grande destaque — a mensagem falsa ou enganadora, remetendo a sua refutação para os parágrafos finais. Ao fazer isso, ainda que não intencionalmente, alimentam o chamado efeito da influência contínua (continued influence effect), identificado por vários estudos em psicologia cognitiva.

O erro que persiste depois da correção

Segundo Stephan Lewandowsky e Ullrich Ecker, dois dos principais investigadores na área da desinformação, a correção de uma informação falsa raramente elimina o seu impacto, sobretudo se essa correção vier tarde, for ambígua ou menos saliente do que a mensagem original. Em vez de neutralizar o erro, o que acontece é que a informação inicial (neste caso, a mentira que o fact-check procura desmontar) permanece ativa na memória, influenciando julgamentos futuros — mesmo quando a pessoa se recorda da correção (Lewandowsky et al., 2012).

Este fenómeno é ainda mais perigoso quando a desinformação é apresentada logo no título ou nas primeiras linhas do artigo. Como bem demonstraram Pennycook e Rand (2019), o simples ato de repetir uma alegação — mesmo para a desmentir — pode torná-la mais familiar, e por isso mais credível, sobretudo junto de leitores distraídos ou em leitura superficial, como é comum nas redes sociais.

É exatamente este o padrão de muitos artigos do Polígrafo. A peça começa por destacar, sem reservas, a frase ou imagem falsa ("Político X disse que os imigrantes recebem mais do que os reformados"), e só depois de vários parágrafos surge o veredito: "Falso", "Impreciso" ou "Descontextualizado". Até lá, o leitor já absorveu — e muitas vezes partilhou — a narrativa errada.

Correção tardia, dano feito

As organizações de fact-checking têm justificado este modelo com o argumento da “transparência editorial” ou da necessidade de apresentar “o que está a ser verificado”. Contudo, isso ignora uma realidade central: o que é lido primeiro é o que mais marca. Como alertam Fazio et al. (2015), a nossa mente tende a reter mais facilmente a informação familiar e emocionalmente marcante — e a desinformação, por definição, é quase sempre construída para cumprir esses critérios.

Mais grave ainda: este tipo de construção pode funcionar como uma janela de oportunidade para a viralização da mentira, validada pelo prestígio da própria plataforma que a denuncia. A leitura apressada de um fact-check que começa com a frase errada e termina com um “falso” pouco visível é, para muitos utilizadores, indistinguível de um conteúdo jornalístico comum — contribuindo assim para o reforço do erro original.

Polígrafo ou amplificador? Uma crítica necessária

Não se trata aqui de pôr em causa a necessidade de verificar factos — pelo contrário. Trata-se de criticar uma forma específica de verificar, que ignora as evidências da psicologia cognitiva e os riscos de reprodução da falsidade. Plataformas como o Polígrafo têm a responsabilidade acrescida de compreender como funciona a memória, como se propagam as ideias, e sobretudo, como não perpetuar aquilo que dizem combater.

Como sugerem Lewandowsky e Cook no "Debunking Handbook 2020", as boas práticas de fact-checking passam por:

  • Evitar repetir a desinformação sem necessidade;
  • Dar destaque à correção, não ao mito;
  • Oferecer uma explicação alternativa clara e fácil de memorizar;
  • Usar linguagem simples e visualmente apelativa;
  • Prevenir, sempre que possível, com inoculação prévia (prebunking).

Estas práticas, infelizmente, estão longe de ser norma em muitos dos conteúdos publicados. Quando o jornalismo abdica da pedagogia em nome do clique, não é a verdade que vence: é a mentira que muda de roupa e continua a circular, legitimada por quem deveria travá-la.

Combater a desinformação é mais do que desmentir

Não basta desmentir a mentira — é preciso desmontar o seu apelo. E isso começa na forma como a estrutura informativa é apresentada. Se o fact-check repetir a falsidade com o mesmo destaque e dramatismo que a notícia enganosa, então transforma-se num instrumento de propagação involuntária da desinformação.

O jornalismo de verificação não pode funcionar com as mesmas lógicas de sedução que o jornalismo sensacionalista. Se o objetivo é educar, esclarecer e proteger o espaço público, é preciso colocar a verdade no centro — não como nota de rodapé, mas como abertura.

 -

Referências: