sábado, agosto 02, 2025

Alemanha: As Cicatrizes da Unificação

Trinta e cinco anos após a queda do Muro de Berlim, a Alemanha continua dividida. A fronteira desapareceu do mapa, mas não da memória. A chamada “reunificação” alemã, celebrada como um triunfo da liberdade e da integração europeia, revela-se, com o distanciamento do tempo, menos como um pacto entre iguais e mais como uma ocupação administrativa, simbólica e económica da Alemanha de Leste. O que se prometeu como reencontro nacional degenerou, para muitos cidadãos orientais, numa longa transição marcada por perda, desvalorização e exclusão.

O contexto e a pressa

A reunificação, formalizada a 3 de outubro de 1990, foi conduzida sob forte pressão interna e internacional. Helmut Kohl, com o apoio decisivo dos Estados Unidos, capitalizou o colapso acelerado da RDA para impor uma integração unilateral. Através do artigo 23 da Lei Fundamental da RFA, os territórios da antiga RDA foram absorvidos sem revisão constitucional nem consulta popular significativa. O modelo ocidental foi transplantado — completo e intacto — para uma população que nunca o tinha vivido, e que não participou na sua definição.

Rapidamente, a elite política e administrativa da RDA foi substituída. As instituições desapareceram. As empresas estatais foram encerradas ou vendidas a retalho pela Treuhandanstalt. A moeda, o marco ocidental, foi imposta numa conversão artificial que condenou a produção local à falência imediata. Tudo o que não cabia no modelo da RFA foi descartado, como se a RDA tivesse sido um erro histórico a apagar. O resultado foi uma desindustrialização sem precedentes, um êxodo em massa, desemprego crónico e um sentimento generalizado de humilhação identitária.

Unificação ou ocupação?

A semelhança com outros processos de integração assimétrica é gritante. Tal como o Vietname do Sul foi absorvido e anulado pelo Norte comunista, ou como a África do Sul pós-apartheid integrou simbolicamente os negros na cidadania política mas manteve intocadas as estruturas económicas da minoria branca, também na Alemanha a unificação não foi partilha, mas imposição.
Menos de 5% das elites institucionais alemãs são hoje originárias da ex-RDA. Nos tribunais superiores, ministérios, universidades, media ou forças armadas, os orientais continuam ausentes. A representação política é igualmente desigual. A experiência de vida na RDA foi deslegitimada, a sua cultura ridicularizada, e o seu legado sistematicamente omitido da memória oficial.

A resposta a este apagamento tem sido o ressentimento. O Leste vota diferente, confia menos nas instituições e acredita cada vez menos na promessa europeia. A Alternativa para a Alemanha (AfD) conquista hoje, nos estados orientais, entre 25% e 35% do eleitorado — ultrapassando os partidos tradicionais. Este crescimento não é um acidente demográfico: é a expressão de uma bomba social que vem sendo armada há décadas, sob a forma de estigmas sociais, desigualdade estrutural e ausência de reconhecimento.

O que está por fazer

O que falta não é apenas investimento económico — é reconhecimento simbólico. Falta uma narrativa comum que incorpore a história da RDA sem reducionismos, sem a caricatura da ditadura ou a romantização do passado. Falta integrar, verdadeiramente, os cidadãos do Leste na definição do que é ser alemão. Mas tudo indica que essa reconciliação não acontecerá. O Estado federal mantém o seu modelo centralizado. A União Europeia limita-se a aplaudir os indicadores macroeconómicos, sem ver o que fermenta nas regiões desertas, nas urnas ou no discurso político das novas gerações orientais.

A Alemanha está hoje mais rica, mais poderosa, mas não mais unida. O projeto europeu assenta numa narrativa de reconciliação e progresso, mas ignora que no seu coração existe uma fratura interna não resolvida, com potencial para contaminar o continente. O desconforto alemão não é apenas uma questão nacional: é um sintoma europeu. E se continuar a ser ignorado, acabará por rebentar — não com estrondo, mas com erosão lenta e inexorável.


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