domingo, novembro 09, 2025

O ruído dos comentadores e a crise da informação

 

Vivemos numa era em que a opinião se tornou um bem de consumo rápido, servido em doses diárias nos ecrãs, rádios e plataformas digitais. Os comentadores-residentes, figuras que opinam sobre tudo com a mesma convicção, ocupam hoje o lugar que antes era reservado ao jornalismo rigoroso e à análise fundamentada. Não é um fenómeno novo — Pierre Bourdieu já alertava, em Sobre a Televisão (1996), para o perigo dos fast-thinkers: pessoas que, dominando a lógica mediática, substituem o debate profundo por frases curtas e certezas fáceis.

A televisão, e por extensão os novos média, operam por circularidade: jornalistas que citam comentadores, comentadores que respondem a jornalistas, programas que reproduzem debates fabricados por outros programas. A informação gira em circuito fechado, alimentando-se a si própria, enquanto a realidade é reduzida a um conjunto de slogans. Pascal Boniface, em Les Intellectuels Faussaires (2011), criticou este mesmo mecanismo, apontando a forma como pseudoespecialistas, protegidos pela sua visibilidade mediática, moldam a opinião pública com simplificações ou falsificações convenientes.

Este é, talvez, o maior paradoxo do nosso tempo: nunca tivemos tanto acesso à informação, mas raramente tivemos tão pouco discernimento na sua filtragem. A lógica da velocidade e da viralidade criou uma arena onde o saber não é premiado — o palco é ocupado por quem fala mais alto ou gera mais cliques. A consequência é uma opinião pública condicionada, não pela pluralidade de vozes, mas por uma elite mediática que repete as mesmas narrativas até que estas pareçam consensuais.

O papel do jornalista — e do verdadeiro intelectual — deveria ser outro: mediar, contextualizar, descodificar. Não cabe ao jornalista ser oráculo ou árbitro moral, mas sim ajudar a sociedade a compreender os factos em toda a sua complexidade. A humildade de reconhecer o “quase nada de quase tudo” é o que distingue o jornalismo como serviço público e não como espetáculo.

Se Bourdieu e Boniface permanecem tão atuais, é porque os seus alertas foram ignorados. A crítica à superficialidade e ao domínio dos pseudoespecialistas não era apenas uma análise do final do século XX; é uma radiografia precisa do presente. Se nada mudar, corremos o risco de assistir a uma degradação irreversível do debate público — transformado em ruído, em vez de conhecimento.

A Frota Fantasma Russa e o Fim do Monopólio Ocidental no Mar

 

Quando o G7 e a União Europeia decretaram o embargo ao petróleo russo e o teto de 60 dólares por barril, em 2022, a estratégia parecia sólida: cortar as receitas do Kremlin e isolar Moscovo do sistema financeiro global. Três anos depois, o resultado é ambíguo. A Rússia perdeu parte do seu rendimento energético, mas criou uma estrutura paralela de comércio marítimo — a chamada frota fantasma — que não só dribla as sanções como está a reconfigurar o mapa económico mundial.

Trata-se de uma frota de mais de 400 petroleiros, operados por empresas de fachada sediadas em Dubai, Hong Kong e Seychelles, registados sob bandeiras de conveniência e segurados por entidades russas como a Ingosstrakh. Estes navios desligam os transponders, fazem transferências de carga no alto-mar e vendem crude russo acima do preço-limite ocidental a compradores na China, Índia e Turquia, onde as sanções simplesmente não se aplicam. A frota move-se num espaço jurídico cinzento, onde a proibição se aplica à área de jurisdição do Ocidente, mas legal no resto do mundo.

A ideia das sanções assentava num sistema que, até agora, detinha o controlo do transporte marítimo dependente de uma infraestrutura ocidental — armadores europeus, seguros londrinos, e bancos americanos. Foi sobre essa dependência que o G7 construiu o mecanismo do price cap: só navios com seguro e financiamento ocidentais podem transportar petróleo russo abaixo do limite imposto. O que Moscovo fez foi criar um circuito alternativo: frota própria, seguro estatal, bancos não-ocidentais e liquidações em yuan ou rupias.

Na verdade a frota não é fantasma porque desapareça (embora em alguns navios desliguem os transponders que indicam a sua localização), mas porque o Ocidente não controla o registo dos seus proprietários, as suas rotas e mercadorias e, sobretudo, às suas transações.

O resultado é duplo. Por um lado, o gargalo financeiro imposto pelo Ocidente cortou cerca de 56% das receitas russas desde 2022, reduzindo o orçamento de guerra. Por outro, a frota fantasma garantiu a continuidade do comércio, fazendo chegar petróleo russo a novos mercados e inspirando outros países sancionados — Irão, Venezuela ou Myanmar — a seguir o mesmo modelo.

Mas o impacto mais profundo é estrutural. A combinação de sanções e contra-sanções desencadeou um movimento de desocidentalização do comércio global. Em 2025, quase 70% das exportações russas são negociadas em yuan, o dólar perdeu peso nas reservas internacionais, e emergem alternativas à hegemonia financeira ocidental: o sistema de pagamentos CIPS, o Asian P&I Alliance e as bolsas de mercadorias de Xangai e Dubai, que rivalizam com Londres e Nova Iorque. A China, a Índia e os BRICS constroem, na prática, um mercado paralelo, onde o Ocidente já não dita as regras.

A Europa, entretanto, paga um preço elevado. O fim do fornecimento energético russo custou-lhe mais de 950 mil milhões de euros em energia mais cara e substitutos, agravando a inflação e acelerando a desindustrialização. A Rússia perdeu receitas; a Europa perdeu competitividade. E o comércio mundial caminha para uma fragmentação duradoura.

A frota fantasma é, assim, o sintoma visível de uma transformação invisível: o declínio do monopólio ocidental sobre o transporte, o seguro e o financiamento marítimo. As sanções pretendiam enfraquecer Moscovo, mas acabaram por dar forma ao protótipo de um novo sistema económico multipolar, menos dependente do dólar e mais resistente ao controlo geopolítico do Ocidente.

Em linguagem simples: a Europa quis punir a Rússia e acabou a financiar o mundo dos BRICS. O “fantasma” que hoje navega no Báltico e no Índico é, afinal, o prenúncio do fim de uma era — a era em que o comércio global obedecia a um só centro de poder.