terça-feira, abril 02, 2013

A necessidade aguça o engenho



Para responder às sucessivas crises que há vários anos atingem os órgãos de comunicação social, as empresas têm encontrado soluções mais ou menos criativas.

Não vou falar dos estagiários que gratuitamente asseguram a produção informativa de muitos órgãos de comunicação social, nem do recurso à Internet para copiar e plagiar ou como fonte de notícias, imagens e vídeos, para preencher o espaço noticioso.

Com a publicidade em quebra – e no caso da imprensa, a descida nas vendas – as empresas de media têm de inventar novas fontes de rendimento. Assim, surgem com mais regularidade os cadernos especiais, com reportagens sobre nichos de mercado atrativos para novos anunciantes, às vezes com um "mix" de publireportagem.

É certo que quase sempre há o cuidado de separar o encarte do resto do jornal, quer recorrendo a um grafismo diferente ou sublinhando que se trata de um suplemento "especial". Geralmente o leitor tolera – e percebe – essa necessidade comercial, uma vez que ela não altera o corpo principal do jornal.

Porém, a luta pela sobrevivência levou os jornais a puxar para o corpo da notícia o que antes estava delimitado ao espaço comercial. Notícias com a indicação no rodapé que "o jornalista viajou com o apoio da companhia aérea x" ou "a convite da empresa y" começam a tornar-se banais, mesmo quando a empresa y e a companhia aérea x são a razão da notícia.

O mecenato é a última novidade nesta ligação entre trabalho jornalístico e apoio comercial.
Caracteriza-se por uma espécie de bolsa, financiada por um conjunto de empresas, que é utilizada para suportar as despesas de um trabalho jornalístico que se pretende excecional.


Ou seja, não é para financiar reportagens do dia-a-dia, como um debate parlamentar mas, por exemplo, para acompanhar aventureiros numa subida ao Evereste. Vendo por este ângulo, parece ser uma ideia louvável e uma oportunidade para os jornais enriquecerem os seus conteúdos, apesar da crise.

Mas, se fosse uma reportagem sobre o isolamento das populações do interior, poderia o jornalista falar das falhas na distribuição elétrica ou da deficiente rede de telemóvel, se entre os mecenas estivesse uma distribuidora elétrica ou uma operadora telefónica? E o mecenas estaria disposto a financiar um trabalho que poderia prejudicar a sua marca?

Mesmo na inócua reportagem sobre os aventureiros no Evereste, estaria o mecenas disposto a financiar a reportagem se os montanhistas fossem patrocinados por uma marca rival?

Aparentemente, os jornais que recorrem a este tipo de financiamento, alegam que a independência do jornalista está sempre garantida, quer porque a sua entidade patronal não é o mecenas – apesar de ser o financiador – quer porque o leitor sabe à partida que o trabalho jornalístico tem o apoio de uma marca comercial.

Podemos, naturalmente, alegar que essa simples menção é uma honestidade que muitos órgãos de comunicação social não têm. Afinal, direta ou indiretamente a publicidade é a principal fonte de receita de um jornal e entre a oferta de um bilhete de avião ou um anúncio pago de igual valor a diferença é nenhuma… ou talvez não.

Dizer que o jornalista não sofre nenhum condicionamento é um disparate sem sentido. Não só porque em tempos de crise o jornalista procura proteger o seu posto de trabalho e, consequentemente, a sua empresa mas também porque o jornalista é condicionado pela forma como os outros o veem, ou pela forma como quer ser visto. E este risco não é menor do que o outro.

Proteger o mecenas, ou preocupar-se pelo modo como o seu trabalho é visto pelo investidor é apenas uma parte do problema. Fiscalizar em excesso e destacar o que não merece referência, para demonstrar a sua independência é o reverso da medalha. Atitudes que não são assim tão incomuns, basta ver o cuidado que têm os órgãos de comunicação social públicos em fiscalizar o Estado e a pressão – discreta ou notória – com que o poder político retribui.

A atividade jornalística obriga os profissionais de media a andar sobre o fio da navalha, evitando tombar entre a obsessão e o deslumbramento. O patrocínio e o mecenato são mais dois elementos para causar desequilíbrio.


Publicado em Setúbal na Rede em 02-04-2013

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