sexta-feira, maio 23, 2025

 


 Censura Moderna: Quando a Liberdade se Torna Ilusão

Vivemos numa era onde se proclama a liberdade de expressão com pompa e circunstância, mas a realidade mostra-nos uma tendência oposta: uma censura disfarçada, subtil, porém cada vez mais poderosa. O jornalista Lorenzo Ramírez, em declarações à plataforma de notícias espanhola, Negocios TV, denuncia esta inversão de princípios com lucidez. Segundo ele, estamos a assistir a um sequestro não só da liberdade de expressão, mas também – e antes de tudo – da liberdade de pensamento.

Ao contrário dos regimes totalitários clássicos, que justificavam a repressão em nome da segurança nacional ou da luta contra traidores, hoje a censura surge camuflada sob o manto da defesa da democracia. Não se proíbe diretamente. Move-se a janela de Overton – o leque de ideias socialmente aceitáveis – até que qualquer desvio se torne impensável, e portanto, irrelevante. As pessoas aprendem a calar-se, não porque lhes é imposto, mas porque desconhecem que existe outra forma de pensar.

Ramírez aponta como exemplo o discurso de Ursula von der Leyen em Davos, onde a “desinformação” foi apontada como um dos maiores obstáculos à governação global. Esta palavra tornou-se a nova desculpa para intervir, censurar e controlar. Em nome da verdade, apagam-se vozes. Em nome do bem comum, molda-se o pensamento. E tudo isto com uma sofisticação assustadora: projetos como o “Elisa”, em Espanha, ilustram como os serviços de inteligência são hoje atores ativos na guerra contra as opiniões divergentes.

A ciência, antes espaço privilegiado para o debate, é outro terreno capturado. Durante a pandemia, ou no debate climático, quem desafia o guião oficial é afastado, perde financiamento, reputação e visibilidade. A lógica da verdade contra a mentira foi invertida: já não se desmonta o erro com argumentos, silencia-se a crítica.

Isto é possível, diz Ramírez, porque o poder já não se apresenta em forma de força bruta, mas de controlo tecnocrático. Quem detém o financiamento da investigação, a publicidade dos media, a moderação das redes sociais e os algoritmos das grandes plataformas, detém a narrativa – e a capacidade de excluir os dissidentes. Esta aliança entre elites políticas, tecnocratas e corporações não precisa de censurar diretamente. O silêncio é induzido por exclusão e medo.

A verdadeira batalha, contudo, não acontece nas cúpulas. Está nas conversas de café, nos jantares em família, nos silêncios cúmplices entre amigos. Se aí não se ousa dizer o que se pensa, se o medo do “politicamente incorreto” amordaça, então já não é preciso polícia do pensamento – o cidadão tornou-se censor de si mesmo.

Ramírez lança um apelo: duvidem. Questionem as verdades únicas. Recusem-se a ser apenas consumidores de narrativas embaladas. A dúvida não é um luxo; é a essência da liberdade intelectual. E é esta dúvida que impede que, tal como no romance 1984 de Orwell, as pessoas acabem a rezar para que lhes digam o que devem pensar.

Hoje, a censura é sofisticada. É digital, psicológica, económica. Mas é real. E enquanto acreditarmos que somos livres apenas porque ninguém nos cala à força, estaremos a abdicar dessa liberdade sem sequer nos apercebermos.

quinta-feira, maio 22, 2025

 

Do Ser ao Ter — e ao Saber?
Uma leitura histórica das transformações do poder

Introdução

Ao longo da história, o conceito de poder e os critérios que o legitimam têm sofrido transformações profundas. Em determinados períodos, o poder assentou no nascimento e na linhagem; noutros, no capital acumulado. Hoje, há indícios de que uma nova transição está em curso. Este ensaio propõe uma leitura histórica dessas mutações, formulando a hipótese de que caminhamos para uma era em que o saber será o principal fundamento do poder social e político.

 

I. A era do Ser: o poder da linhagem

Até ao final do Antigo Regime, o poder social era sobretudo uma questão de ser. Ser nobre, ser clero, ser rei. O estatuto era herdado, imutável e inscrito na estrutura feudal e estamental que organizava as sociedades europeias.

O nascimento determinava o acesso ao poder político, à justiça e até ao conhecimento. A aristocracia não precisava de justificar a sua posição — ela era ontológica: o poder estava no ser.

Como observou Tocqueville ao analisar o Antigo Regime francês, a sociedade pré-revolucionária assentava numa rigidez social extrema, onde os privilégios se transmitiam por sangue e estatuto, não por mérito ou realização.

Este sistema produziu uma elite fechada, cuja legitimidade vinha de títulos, brasões e prerrogativas conferidas por uma ordem transcendente. A mudança era rara, a mobilidade quase inexistente. O poder era um atributo existencial — um dado adquirido, não uma conquista.

 

II. A era do Ter: o poder do capital

Com as revoluções liberais dos séculos XVIII e XIX — em particular a Revolução Francesa — essa ordem foi radicalmente posta em causa. O colapso do sistema estamental abriu espaço a uma nova elite emergente: a burguesia.

O critério de poder passou a ser ter: ter capital, ter propriedade, ter meios de produção.

As democracias liberais do século XIX nasceram sob esta nova matriz. O sufrágio censitário, por exemplo, restringia o voto a quem tinha rendimento. A lógica capitalista da modernidade industrial assentou-se na ideia de que a posse, o investimento e o consumo constituem as novas formas de poder.

Max Weber reconheceu este fenómeno ao distinguir a “ética protestante” como um dos motores da acumulação capitalista e da racionalização económica que deu origem ao capitalismo moderno. O poder tornou-se fluido, mas não igualitário: transitava de mãos, mas ainda exigia acesso ao património.

A era do Ter também institucionalizou novas hierarquias: o mercado como árbitro da relevância social, a meritocracia como narrativa de ascensão e o crédito como alavanca de mobilidade. O Ter passou a medir sucesso, influência e até dignidade.

 

III. A era do Saber?

No final do século XX e início do XXI, assistimos a uma mutação mais subtil, mas potencialmente mais profunda. O capital continua a ser importante — mas já não é suficiente.

Num mundo cada vez mais digital, hiperconectado e tecnologicamente complexo, quem detém o saber detém o poder real de transformação. Não se trata apenas de conhecimento académico, mas de competência estratégica, técnica, criativa, adaptativa.

Um programador solitário pode redesenhar o funcionamento de um mercado.
Um cientista pode antecipar riscos globais.
Um líder de pensamento pode mobilizar milhões com ideias.

Como sugeriu Peter Drucker, estamos a entrar numa “sociedade do conhecimento”, onde os activos mais valiosos são intangíveis: dados, capacidades cognitivas, inovação.

A ascensão das chamadas “elites cognitivas” — engenheiros, empreendedores, especialistas em IA, estrategas digitais — mostra que o poder já está a migrar para mãos que sabem mais, não apenas que têm mais.

Este fenómeno torna-se ainda mais evidente com o avanço da inteligência artificial. A IA não elimina o papel humano — transforma-o. Quem souber interagir eficazmente com sistemas de IA, formular boas perguntas, validar resultados e aplicar essas soluções ao mundo real, torna-se indispensável. O saber, neste contexto, já não é apenas possuir informação, mas compreender, filtrar, e aplicar esse conhecimento com sentido crítico e visão estratégica.

Dominar a IA não será apenas uma questão técnica — será uma questão de poder. Saber como construir, interpretar e utilizar modelos de IA tornar-se-á tão determinante quanto saber ler ou escrever foi noutros períodos da história.

 

IV. Consequências políticas e sociais

Tal como o embate entre aristocracia e burguesia conduziu às grandes revoluções modernas, a tensão entre o Ter e o Saber poderá configurar novos conflitos. As estruturas de representação política ainda reflectem lógicas de propriedade e capital, mas a influência efectiva está cada vez mais nas mãos de quem compreende, prevê e molda os sistemas complexos que regem o século XXI.

A eventual transição para uma era do Saber não é necessariamente democrática. O acesso ao conhecimento avançado é desigual. A nova aristocracia cognitiva poderá replicar formas de exclusão e desigualdade se não forem criados mecanismos de partilha e inclusão.

A concentração do saber em plataformas tecnológicas, centros de dados ou empresas de alta complexidade pode levar a novas formas de dependência e despotismo algorítmico. A literacia digital e cognitiva tornar-se-á, por isso, um requisito cívico fundamental — talvez o mais importante do nosso tempo.

 

Conclusão

Da aristocracia hereditária ao capitalismo financeiro, a história do poder revela padrões de substituição e reinvenção. Hoje, vivemos possivelmente o início de uma nova transição — da era do Ter para a era do Saber.

A questão não é apenas quem sabe mais, mas como será redistribuído esse saber, e que legitimidade terá para exercer o poder.

Se, como em 1789, estivermos perante uma ruptura histórica, o futuro não será apenas uma evolução técnica — será uma redefinição do que consideramos justo, legítimo e desejável.