Do Ser ao
Ter — e ao Saber?
Uma leitura histórica das transformações do poder
Introdução
Ao longo da
história, o conceito de poder e os critérios que o legitimam têm sofrido
transformações profundas. Em determinados períodos, o poder assentou no
nascimento e na linhagem; noutros, no capital acumulado. Hoje, há indícios de
que uma nova transição está em curso. Este ensaio propõe uma leitura histórica
dessas mutações, formulando a hipótese de que caminhamos para uma era em que o saber
será o principal fundamento do poder social e político.
I. A era do Ser: o poder da linhagem
Até ao final
do Antigo Regime, o poder social era sobretudo uma questão de ser. Ser
nobre, ser clero, ser rei. O estatuto era herdado, imutável e inscrito na
estrutura feudal e estamental que organizava as sociedades europeias.
O nascimento
determinava o acesso ao poder político, à justiça e até ao conhecimento. A
aristocracia não precisava de justificar a sua posição — ela era ontológica: o
poder estava no ser.
Como
observou Tocqueville ao analisar o Antigo Regime francês, a sociedade pré-revolucionária
assentava numa rigidez social extrema, onde os privilégios se transmitiam por
sangue e estatuto, não por mérito ou realização.
Este sistema
produziu uma elite fechada, cuja legitimidade vinha de títulos, brasões e
prerrogativas conferidas por uma ordem transcendente. A mudança era rara, a
mobilidade quase inexistente. O poder era um atributo existencial — um dado
adquirido, não uma conquista.
II. A era do Ter: o poder do capital
Com as
revoluções liberais dos séculos XVIII e XIX — em particular a Revolução
Francesa — essa ordem foi radicalmente posta em causa. O colapso do sistema
estamental abriu espaço a uma nova elite emergente: a burguesia.
O critério
de poder passou a ser ter: ter capital, ter propriedade, ter meios de
produção.
As
democracias liberais do século XIX nasceram sob esta nova matriz. O sufrágio
censitário, por exemplo, restringia o voto a quem tinha rendimento. A
lógica capitalista da modernidade industrial assentou-se na ideia de que a posse,
o investimento e o consumo constituem as novas formas de poder.
Max Weber
reconheceu este fenómeno ao distinguir a “ética protestante” como um dos
motores da acumulação capitalista e da racionalização económica que deu origem
ao capitalismo moderno. O poder tornou-se fluido, mas não igualitário:
transitava de mãos, mas ainda exigia acesso ao património.
A era do Ter
também institucionalizou novas hierarquias: o mercado como árbitro da
relevância social, a meritocracia como narrativa de ascensão e o crédito como
alavanca de mobilidade. O Ter passou a medir sucesso, influência e até
dignidade.
III. A era do Saber?
No final do
século XX e início do XXI, assistimos a uma mutação mais subtil, mas
potencialmente mais profunda. O capital continua a ser importante — mas já não
é suficiente.
Num mundo
cada vez mais digital, hiperconectado e tecnologicamente complexo, quem
detém o saber detém o poder real de transformação. Não se trata apenas de
conhecimento académico, mas de competência estratégica, técnica, criativa,
adaptativa.
Um
programador solitário pode redesenhar o funcionamento de um mercado.
Um cientista pode antecipar riscos globais.
Um líder de pensamento pode mobilizar milhões com ideias.
Como sugeriu
Peter Drucker, estamos a entrar numa “sociedade do conhecimento”, onde
os activos mais valiosos são intangíveis: dados, capacidades cognitivas,
inovação.
A ascensão
das chamadas “elites cognitivas” — engenheiros, empreendedores, especialistas
em IA, estrategas digitais — mostra que o poder já está a migrar para mãos que sabem
mais, não apenas que têm mais.
Este
fenómeno torna-se ainda mais evidente com o avanço da inteligência
artificial. A IA não elimina o papel humano — transforma-o. Quem souber
interagir eficazmente com sistemas de IA, formular boas perguntas, validar
resultados e aplicar essas soluções ao mundo real, torna-se indispensável. O
saber, neste contexto, já não é apenas possuir informação, mas compreender,
filtrar, e aplicar esse conhecimento com sentido crítico e visão estratégica.
Dominar a IA
não será apenas uma questão técnica — será uma questão de poder. Saber como
construir, interpretar e utilizar modelos de IA tornar-se-á tão determinante
quanto saber ler ou escrever foi noutros períodos da história.
IV. Consequências políticas e sociais
Tal como o
embate entre aristocracia e burguesia conduziu às grandes revoluções modernas,
a tensão entre o Ter e o Saber poderá configurar novos conflitos.
As estruturas de representação política ainda reflectem lógicas de propriedade
e capital, mas a influência efectiva está cada vez mais nas mãos de quem
compreende, prevê e molda os sistemas complexos que regem o século XXI.
A eventual
transição para uma era do Saber não é necessariamente democrática. O
acesso ao conhecimento avançado é desigual. A nova aristocracia cognitiva
poderá replicar formas de exclusão e desigualdade se não forem criados
mecanismos de partilha e inclusão.
A
concentração do saber em plataformas tecnológicas, centros de dados ou empresas
de alta complexidade pode levar a novas formas de dependência e despotismo
algorítmico. A literacia digital e cognitiva tornar-se-á, por isso, um
requisito cívico fundamental — talvez o mais importante do nosso tempo.
Conclusão
Da
aristocracia hereditária ao capitalismo financeiro, a história do poder revela
padrões de substituição e reinvenção. Hoje, vivemos possivelmente o início de
uma nova transição — da era do Ter para a era do Saber.
A questão
não é apenas quem sabe mais, mas como será redistribuído esse saber,
e que legitimidade terá para exercer o poder.
Se, como em
1789, estivermos perante uma ruptura histórica, o futuro não será apenas uma
evolução técnica — será uma redefinição do que consideramos justo, legítimo e
desejável.
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