Nos últimos
anos, plataformas de fact-checking como o Polígrafo tornaram-se
atores centrais no ecossistema mediático português. Reclamando para si a missão
de “verificar os factos” e “combater a desinformação”, estas entidades
conquistaram legitimidade institucional, presença nos grandes meios e,
sobretudo, a confiança de um público preocupado com a verdade. No entanto,
importa perguntar: estarão realmente a cumprir esse papel ou, paradoxalmente, a
amplificar aquilo que procuram neutralizar?
Uma análise
crítica à forma como o Polígrafo estrutura os seus conteúdos levanta sérias
dúvidas. Com frequência, os títulos e aberturas dos artigos reproduzem — com
grande destaque — a mensagem falsa ou enganadora, remetendo a sua
refutação para os parágrafos finais. Ao fazer isso, ainda que não
intencionalmente, alimentam o chamado efeito da influência contínua (continued
influence effect), identificado por vários estudos em psicologia cognitiva.
O erro que persiste depois da correção
Segundo Stephan
Lewandowsky e Ullrich Ecker, dois dos principais investigadores na
área da desinformação, a correção de uma informação falsa raramente elimina o
seu impacto, sobretudo se essa correção vier tarde, for ambígua ou menos
saliente do que a mensagem original. Em vez de neutralizar o erro, o que
acontece é que a informação inicial (neste caso, a mentira que o fact-check
procura desmontar) permanece ativa na memória, influenciando julgamentos
futuros — mesmo quando a pessoa se recorda da correção (Lewandowsky et al.,
2012).
Este
fenómeno é ainda mais perigoso quando a desinformação é apresentada logo no
título ou nas primeiras linhas do artigo. Como bem demonstraram Pennycook e
Rand (2019), o simples ato de repetir uma alegação — mesmo para a desmentir
— pode torná-la mais familiar, e por isso mais credível, sobretudo junto
de leitores distraídos ou em leitura superficial, como é comum nas redes
sociais.
É exatamente
este o padrão de muitos artigos do Polígrafo. A peça começa por destacar, sem
reservas, a frase ou imagem falsa ("Político X disse que os imigrantes
recebem mais do que os reformados"), e só depois de vários parágrafos
surge o veredito: "Falso", "Impreciso" ou
"Descontextualizado". Até lá, o leitor já absorveu — e muitas vezes
partilhou — a narrativa errada.
Correção tardia, dano feito
As
organizações de fact-checking têm justificado este modelo com o
argumento da “transparência editorial” ou da necessidade de apresentar “o que
está a ser verificado”. Contudo, isso ignora uma realidade central: o que é
lido primeiro é o que mais marca. Como alertam Fazio et al. (2015),
a nossa mente tende a reter mais facilmente a informação familiar e
emocionalmente marcante — e a desinformação, por definição, é quase sempre
construída para cumprir esses critérios.
Mais grave
ainda: este tipo de construção pode funcionar como uma janela de
oportunidade para a viralização da mentira, validada pelo prestígio da
própria plataforma que a denuncia. A leitura apressada de um fact-check
que começa com a frase errada e termina com um “falso” pouco visível é, para
muitos utilizadores, indistinguível de um conteúdo jornalístico comum —
contribuindo assim para o reforço do erro original.
Polígrafo ou amplificador? Uma crítica necessária
Não se trata
aqui de pôr em causa a necessidade de verificar factos — pelo contrário.
Trata-se de criticar uma forma específica de verificar, que ignora as
evidências da psicologia cognitiva e os riscos de reprodução da falsidade.
Plataformas como o Polígrafo têm a responsabilidade acrescida de compreender
como funciona a memória, como se propagam as ideias, e sobretudo, como não
perpetuar aquilo que dizem combater.
Como sugerem
Lewandowsky e Cook no "Debunking Handbook 2020", as boas
práticas de fact-checking passam por:
- Evitar repetir a desinformação sem necessidade;
- Dar destaque à correção, não ao mito;
- Oferecer uma explicação
alternativa clara e fácil de memorizar;
- Usar linguagem simples e
visualmente apelativa;
- Prevenir, sempre que possível,
com inoculação prévia (prebunking).
Estas
práticas, infelizmente, estão longe de ser norma em muitos dos conteúdos
publicados. Quando o jornalismo abdica da pedagogia em nome do clique, não é a
verdade que vence: é a mentira que muda de roupa e continua a circular,
legitimada por quem deveria travá-la.
Combater a desinformação é mais do que desmentir
Não basta
desmentir a mentira — é preciso desmontar o seu apelo. E isso começa na forma como a
estrutura informativa é apresentada. Se o fact-check repetir a falsidade
com o mesmo destaque e dramatismo que a notícia enganosa, então transforma-se
num instrumento de propagação involuntária da desinformação.
O jornalismo
de verificação não pode funcionar com as mesmas lógicas de sedução que o
jornalismo sensacionalista. Se o objetivo é educar, esclarecer e proteger o
espaço público, é preciso colocar a verdade no centro — não como nota de
rodapé, mas como abertura.
Referências:
- Lewandowsky, S., Ecker, U. K. H., Seifert, C. M.,
Schwarz, N., & Cook, J. (2012). Misinformation and
Its Correction: Continued Influence and Successful Debiasing.
Psychological Science in the Public Interest.
- Lewandowsky, S., & Cook, J. (2020). The Debunking Handbook
2020.
- Fazio, L. K., Brashier, N. M., Payne, B. K.,
& Marsh, E. J. (2015). Knowledge Does Not
Protect Against Illusory Truth. Journal of Experimental Psychology.
- Pennycook, G., & Rand, D. G. (2019). Lazy,
Not Biased: Susceptibility to Partisan Fake News Is Better Explained by
Lack of Reasoning Than by Motivated Reasoning. Cognition.
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