segunda-feira, abril 07, 2014

Os advogados do Diabo



Há políticos e políticos. Uns que, apesar dos seus telhados de vidro, escapam incólumes ao escrutínio dos jornalistas e outros que – tendo também telhados de vidro – veem todos os momentos da sua vida examinados ao pormenor. Não quero dizer que os jornalistas favorecem uns em detrimento dos outros, mas é a constatação de que há políticos que atraem mais os jornalistas. Porquê? Esse é o grande mistério.

Na história da democracia portuguesa houve 17 primeiros-ministros. Certamente que a maioria dos meus leitores terá dificuldade em recordar o nome de uma dezena deles (e estou a ser otimista), mas se pelo contrário, lhe pedir para nomear os mais criticados nos media, não hesitará em citar-me três: Mário Soares, Cavaco Silva e José Sócrates.

Deles sabemos tudo: Os negócios da mãe, dos filhos e do genro; as casas na praia, a vida em Paris ou os amigos de Macau. Sobre eles escreveram-se milhares de páginas, alguns livros e centenas de manchetes. Por causa deles, surgiram jornais que se especializaram nos seus escândalos, e alguns desses jornais acabaram por desaparecer quando o filão se esgotou.

Apesar de tudo, Soares e Cavaco foram eleitos para o mais alto cargo da nação.

No Vaticano, durante um processo de beatificação, são nomeados dois especialistas religiosos. Um deles, chamado de "promotor da fé", reúne todas as provas dos milagres, faz entrevistas, colhe pistas e o outro, apelidado de "advogado do Diabo", vai atacar todas as evidências, juntando tudo o que há contra o candidato. Apesar de campos aparentemente opostos, um e outro contribuem para um objetivo comum: encontrar a verdade.

O jornalismo é como andar no fio da navalha, entre o ódio e o deslumbramento. Quando o jornalista tomba para um dos lados, deixa de ser jornalista. Infelizmente essa é uma realidade muito comum não apenas no jornalismo de política, mas também de economia ou de futebol. Ao tomar uma posição, jornalista torna-se um agente de uma das fações.

A ideia de que o jornalista só se aproximará da verdade se for o antagonista, ou o "advogado do Diabo" é errada porque, ao focar-se no ataque, vai ignorar todas as evidências que contrariam o seu ponto de vista. Na realidade, ao colocar-se desse lado estará a posicionar-se no campo oposto ao que considera ser o do "promotor da fé".

Não sou provedor de outros órgãos de comunicação social, pelo que não referirei nomes nem episódios concretos, mas como observador dos media, estou convicto que a relação entre alguns jornalistas e José Sócrates já entrou na categoria dos ódios pessoais. Se isso é irrelevante para o político, é – do meu ponto de vista – mortal para o jornalista. Põe em causa a sua credibilidade.

Enquanto os políticos conseguem fazer reverter a seu favor os ódios pessoais, conseguindo ganhar votos vitimizando-se, o jornalista ao tomar partido coloca-se num dos lados, e isso é percebido por todos. Naturalmente que haverá sempre quem gabe a sua "coragem" ou critique a "arrogância". Mas, ao contrário dos políticos, o jornalista não pode ser "a favor" ou "contra", porque se for, ele é político também.

Os jornalistas que no passado "perseguiram" Mário Soares e Cavaco Silva, entraram na política ou não ficaram para a história. Também aqueles que há uma década não param de falar de José Sócrates, tal como aconteceu com Soares e Cavaco, de tanto o odiar ainda o vão eleger presidente.


(Publicado em Setúbal na Rede 07/04/2014)

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