segunda-feira, fevereiro 06, 2012

Apagar a História




Todos nós, certamente, já tivemos vontade de voltar atrás e apagar o passado, como apagamos uma frase escrita na tela do computador. Por vezes desejamos que determinadas palavras não tivessem sido ditas, ou que certos factos não tivessem ocorrido. Mas, quando isso acontece, o nosso primeiro pensamento é “como apagar?”, “como anular?” ou “como fazer que ninguém note?”. Por isso não surpreende que essas sejam algumas das solicitações mais repetidas ao diretor do "Setúbal na Rede".

No romance 1984, de George Orwel, o principal personagem é um funcionário público cuja tarefa é reescrever artigos de jornal de modo a que o registo histórico seja congruente com a ideologia em vigor no governo. O romance, que é muito mais do que uma simples metáfora política, explica que a falsificação da História é uma forma de controlo de poder:“Quem controla o passado, controla o futuro. Quem controla o presente, controla o passado”.

A trama de 1984 veio-me à memória quando me pediram para escrever sobre as várias solicitações para apagar ou impedir o acesso a notícias de arquivo que, por uma razão ou por outra, se tornaram incómodas para os visados. Não porque eu possa acrescentar muito mais à excelente fundamentação de João Palmeiro na crónica “O Direito ao Esquecimento” que pode ser lida no arquivo da Provedoria do Leitor do "Setúbal na Rede".

Todos os jornais têm o seu arquivo, onde se guarda o histórico de documentos recolhidos e artigos publicados. Há também as hemerotecas, geralmente integradas em bibliotecas ou museus, que organizam e guardam jornais e revistas para posterior consulta. Não creio que alguém tenha solicitado a qualquer um desses arquivos que determinada noticia fosse recortada ou coberta por tinta preta. Então porque o solicitam ao "Setúbal na Rede"?

Porque a Internet simplificou o acesso à informação.

Hoje é possível folhear as páginas de um jornal de 15 de Outubro de 1910, tal como ler as notícias do "Setúbal na Rede" publicadas em 23 de Fevereiro de 1998. A diferença é que para ler o jornal impresso é necessário deslocar-se a um arquivo especializado, já para ler o "Setúbal na Rede" basta escrever algumas palavras-chave num motor de busca. Trata-se de uma diferença abissal que incomoda muita gente.

Além da facilidade de acesso, a Internet “aplanou” a dimensão temporal. Os documentos sugeridos numa busca on-line não se organizam por ordem cronológica, mas por um complexo (e secreto) algoritmo, baseado no histórico das buscas do utilizador, nas páginas mais vistas, no número de referências da palavra procurada além de outros critérios que os autores dos motores de busca querem manter confidenciais. Desta forma, o mais antigo pode surgir primeiro que o actual, do mesmo modo que o falso pode aparecer primeiro que o verdadeiro.

Ao contrário de um arquivo numa hemeroteca, onde uma coleção de jornais surge classificada e encadernada em volumes mensais ou anuais, na Internet o arquivo está aparentemente desordenado, podendo ser organizado de acordo inúmeros critérios. A vantagem de ter uma biblioteca que se arruma de formas diversas, consoante aquilo que se procura obriga, no entanto, o utilizador a separar o “trigo do joio”. Em contrapartida, numa hemeroteca organizada por ordem cronológica, o utilizador precisa de saber onde começar a procurar.

Mas, e se a notícia se refere à suspeição de um delito que, mais tarde, se veio a provar em tribunal que era infundada. Deve ser mantida? Claro. Numa revista ou jornal a mesma notícia estará impressa em papel para quem a guardou. Ninguém vai apagá-la. Ela foi publicada e deu origem ao processo judicial que provou que estava errada. Faz parte da História, tal como o desmentido e o direito de resposta. Não imagino que no on-line existam algum dia funcionários a reescrever, ou a apagar, as notícias do passado, só porque convém que assim seja no presente.

O jornalista relata a actualidade, mas o que produz faz parte da História.

Publicado em Setúbal na Rede - 13-12-2011 10:29

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